segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Conto - Imá Fonseca

AS VIRTUDES DE DONA MIZÉ

IMÁ FONSECA

Em qualquer cidade, em qualquer bairro, em qualquer rua, melhor dizendo em qualquer lugar do mundo, existem as comadres, - aquelas mulheres, matronas solícitas e companheiras nos momentos difíceis. Às vezes dá a impressão de não terem vida própria tal a solicitude e desprendimento com que absorvem nossos problemas; como sentem nossas dores e como são desprendidas em nos socorrer.
Na minha rua, como não podia ser diferente, tínhamos este anjo protetor, era a vizinha que todos sonham ter. Se formos descrever suas atenções, seus conhecimentos e sua disponibilidade, vamos tecer uma rede de virtudes. Até parteira (mesmo nos dias de hoje) poderia ser; aliás, contando suas estórias dizia que lá no interior já fizera uma dúzia deles. Suas quitandas e doces eram apreciadíssimos e sempre éramos agraciados com fartas porções; o meu predileto era “ambrosia” (doce de ovos). O interessante é que sua solicitude a levava a freqüentar praticamente todas as casas do bairro, mas parece que ninguém a visitava, não sei se não gostava de receber visita ou se não tinha tempo, dada sua intensa vida social. Sempre que saía de nossa casa (uma rotina às vezes em doze dupla /tripla – manhã, tarde... e noite!) minha mãe a acompanhava até a porta e a despedida era sempre a mesma: - então até mais ver D. Mizé, muito obrigada, Deus a abençoe, qualquer dia lhe farei uma visita...e a resposta também era a mesma: - ora, ora, não há de que, então não é dando que se recebe...apareça D. Mundica!
A distância era de apenas duas quadras da nossa casa, quando aparecia pela manhã, entrava sorrateiramente pelos fundos e ia direto para a cozinha, sempre levando uma quitanda quentinha, recém-saída do forno e com o cigarro apagado entre os dedos, pegava minha mãe justamente no momento em que estava passando o café. Ali já lançava seus olhos argutos sobre minha mãe procurando alguma mancha, algum inchaço, ou alguma alergia; qualquer coisa que necessitasse de uma reza que faria na hora e como não havia nenhum desses sintomas começava a perguntar se ela ou os demais da casa não sentiram dores de cabeça, diarréia, enjôos, e etc. Então depois destas curiosidades médicas despejava as notícias da redondeza; nenhum acontecimento poderia lhe escapar, era sempre a primeira a saber e a espalhar a novidade e quando não havia nenhuma, fazia previsões que logo eram confirmadas. Quando não aparecia pela manhã, era a tarde, ou então à noite e às vezes em todos os turnos, pelo menos duas vezes por semana. Até hoje não sabemos se mamãe gostava ou não, parecia que sim, pois sempre a recebia com cordialidade e atenção.
Não fosse pela estranha forma de viver, D. Mizé chamaria a atenção do mesmo jeito: - era uma mulher pequena, rechonchuda, mas de cintura fina; o rosto redondo corado era salpicado pelas sardas, tinha olhos azuis e os cabelos curtos encaracolados da cor de fogo (naturais, segundo dizia), a idade era meio indefinida, entre os trinta e cinco quarenta e cinco anos. Era viúva, não tinha filhos e cuidava do pai, um senhor esquelético que ficara cego devido à diabetes.
Aquela mesma atenção que dispensava à minha casa, era distribuída entre toda a circunvizinhança, sem ficar devendo nada a ninguém, pois todos tinham uma dívida de gratidão com ela: - era a advogada que defendia os direitos do Seu Nicolau cuja vidraça fora quebrada pelo moleque filho do vizinho; era a juíza que sentenciava a condenação da filha de D. Maria que pulou a janela para sair com o namorado: era a amiga que consolava Belinha quando o Zeca a traía; era a companheira que animava D. Constância na sua viuvez; era a doutora que prestava os primeiros socorros quando Juju quebrou o braço; etc., etc. Era pau para toda obra, segundo ela própria se apresentava; precisando era só chamar!
Dona Mizé havia ganhado a confiança de todos, mas algumas vezes havia até uma certa confusão entre as famílias; algumas mulheres não entendiam o porque da tamanha dedicação de seus maridos, que até se esqueciam que existia médicos, advogados, juízes, todos a seu serviço, se solicitados; antes por qualquer coisa corriam atrás de D. Mizé. Por outro lado a maioria das mulheres confiavam sua vida à benfazeja, entregando os problemas dos maridos e dos filhos a ela, irritando-os profundamente quando a “toda poderosa” com ares de detentora da verdade invadia sua privacidade com conselhos e rezas de descarrego.
Contudo D. Mizé era querida por todos e invariavelmente dia após dia praticava suas boas ações, pelo menos era a opinião da maioria, não fosse o seu intragável desafeto – o Padre Anacleto. Por acaso a casa paroquial anexa à pequena Igreja dava fundos para o quintal de D. Mizé, e o padre até já se referira a ela como bruxa, não aceitava suas rezas e as intromissões na vida daquelas famílias. Em contrapartida quando ela se referia ao assunto dizia que eram ciúmes, porque o padre não conseguia arrebanhar ovelhas, enquanto que ela se quisesse encheria várias igrejas do tamanho daquela.
Entretanto, para um bom entendedor, parecia haver uma mensagem oculta nas entrelinhas do padre, aquilo não era apenas antagonismos de idéias ou rivalidades religiosas não! Padre Anacleto parecia guardar um segredo! Sua diferença com D. Mizé ia além do dito e conhecido! Mas como descobrir, se padre não pode revelar segredos, mesmo quando não são de confissão? Se é um fato que viu, ou ouviu, ainda mais naquela paróquia, onde todos a endeusavam, como apontar o dedo e acusar a benfeitora a quem todos de uma maneira ou de outra tinham o rabo prezo!
Certa vez o padre chegou a pensar em procurar o bispo, mas depois pensando mais sensatamente viu que seria inútil, poderia comprometer sua imagem diante da igreja, e quem sabe até do Vaticano! Como conseguir provas? Seria aquele caso de âmbito da igreja? E se fizesse as coisas às escondidas, anonimamente... Também seria complicado pois violaria seus princípios, se pelo menos ela fosse uma ovelha do seu rebanho poderia aborda-la para uma conversa... Não! Aquele caso em princípio estava sem solução, mas por outro lado como lidar com sua consciência sendo defensor de princípios e boa moral?
Mesmo aconselhando-se com Deus não encontrava uma saída e a situação continuava escancarada diante de seus olhos, quando da janela de seus aposentos olhava para o quintal de D. Mizé.
Uma coisa que não entendia era a passividade daquelas pessoas; será que ninguém jamais se sentiu curioso em conhecer aquela casa? Afinal D. Mizé entrava e saía de todas as casas à vontade; era certo que aparentemente ela estivesse sempre ausente, menos nas terças e quintas à tarde, mas parece que ninguém nunca conferiu isto. Somente Padre Anacleto sabia que ela tinha lá seus momentos para o lar... Mas de qualquer forma a matrona era esperta, sua casa ficava trancada a sete chaves, para entrar lá tinha que chamar na campainha e isto levantaria a lebre; surpreende-la era impossível!
Naquela terça -feira mesmo tentando se conter, (depois de muito pensar decidiu que o melhor era ignorar) o padre não resistiu, das frestas da sua janela pode acompanhar o início das seções (em média uma hora para cada garoto) – era exatamente duas horas da tarde e duraria até as cinco: não havia bebida, só cigarros, sucos e frutas. As cenas se passavam num cômodo semi-aberto, decorado de vermelho e dourado; uma cama redonda no centro, espelhos de um lado e samambaias do outro e uma música frenética em tom baixo preenchia o ambiente.
O garoto com ares entre amedrontado e curioso, estava encolhido timidamente no meio da cama só de cueca olhando fixamente para um determinado ponto, de onde logo saiu a virtuosa D. Mizé, dançando a “dança do ventre”. Ela vestia apenas uma bata dourada, minúscula e transparente, que ao rítimo da musica ia escorregando pelos ombros até cair a seus pés; depois insinuante e vagarosamente como uma gata, aproximou-se do rapaz enroscando-se a ele, que embora ansioso para dar início à sua “iniciação”, recuou assustado, mas foi logo vencido pelas virtudes de Dona Mizé.

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