Diário,
Por quê festejar a vida? Estou com esta reflexão em mente por causa de uma mensagem que um amigo me enviou pelo computador - um desses power points que eu nunca mais tive tempo de abrir. O cenário era uma montanha, parecia ser no Chile... Havia muitas pessoas meditando lá no topo. Alguns, vestiam roupas de ocidentais. Outros, aquelas roupas coloridas típicas da localidade. O power point falava da lei da atração... que semelhante atrai semelhante. "Se você deseja ter um par feliz e festivo, seja você primeiro alegre e festivo em sua vida." É sempre bom reler estas mensagens. Ainda mais hoje, que eu me peguei chorando, triste com alguns acontecimentos... Pensei comigo mesma que estava tudo bem me sentir triste de vez em quando. Lembro-me bem do professor Victor, falando lá na aula da Neijing, "Está tudo bem sentir-se triste de vez em quando. Ninguém precisa de uma máscara de sorrisos o dia inteiro, todos os dias. Isso não é natural." Sendo assim, eu estava me permitindo vivenciar esta tristeza um pouco.
Hoje é terça-feira. São cinco da tarde. A chuva cai forte aqui em Irajá. Acabo de telefonar para a minha paciente de Shiatsu para avisar que não poderei sair de casa com esse toró. Estão caindo muitos raios e um vento estranho está soprando, passando pela janela aqui da sala na lateral. Parace o assobia de uma bruxa que caçôa de alguma coisa.
Como os raios são finos e rápidos! Eles vêem do alto do céu e não parecem tocar o chão. Caiu um aqui bem no meio da pracinha em frente de casa! Espremi os olhos, como se uma árvore fosse ser derrubada. Não sei como tudo continuou no lugar.
Estou sozinha em casa. O silêncio da solitude é muito apreciável, mas senti medo do prédio cair e eu morrer soterrada. Meus medos instintivos de sobrevivência estão sendo todos revelados com o trabalho que estou fazendo com a minha amiga planta Chapéu-de-couro... O Reino Vegetal guarda em si muitos mistérios e só hoje em dia, passados muitos anos, posso entender as palavras de alguns Xamãs que cruzaram o meu caminho... A Chapéu-de-couro trabalha o fortalecimento da coragem e, para tanto, revela os medos inconscientes... pouco a pouco... Eu tenho sonhado... E têm me sido revelados os medos mais bobos, que nem eu mesma poderia imaginar que eu possuía! Medo de morrer soterrada, medo de ser uma alma ruim e ser sugada para um lugar ruim depois da minha morte, medo de não ter feito o suficiente enquanto viva. Medos, medos, medos. Não é para se espantar que já tive três crises de rim na tenra idade de trinta e três anos.
Esses medos são primários, mas eu sou grata por eles estarem sendo a mim revelados, e preciso ter respeito com o meu próprio processo e não ficar me questionando como eu, uma pessoa que busca ser espiritualizada, ainda consegue ter uns medos tão bobos. Vai entender! Eu apenas os observo, os conheço, tomo ciência deles. O auto-conhecimento é uma das maiores dádivas que podemos alcançar... Pouco a pouco, as minhas sombras estão sendo reveladas... para que eu possa ter mais ciência sobre elas. Sei que é chato, para quem queria ser perfeita. Mas o trabalho é assim mesmo.
Prefiro admitir os meus medos. Só assim poderei trabalhar na reconstrução das minhas idéias.
Um trovão acabou de fazer tremer tudo. Dá para entender por quê ele se chama assim: tro-vão. Mesmo sem querer, me segurei instintivamente na janela e olhei tudo ao meu redor. A rua está cheia de água. Como encheu rápido...
E se o prédio cair agora? Desabar tudo? Ruir! Sempre me disseram que esse prédio foi construído em cima de um pântano. Quando menor, eu sempre me sentia insegura por causa disso.
Olhando para a chuva, ouvindo o vento, sentindo o cheiro que sobe do cimento molhado, vendo a força dos trovões, eu só podia imaginar o quanto eu sou forte mas frágil ao mesmo tempo. "E se eu morresse agora? Será que eu fui uma alma boa o suficiente?" questionei-me.
Tudo o que aconteceu na Região Serrana me veio à mente. Chorei... Quanta gente morreu! Quanta gente ficou infeliz! As lágrimas insistiam em cair pelo meu rosto amedrontado. Me vieram a mente as frases de um jovem jornalista da região serrana... eu havia lido esse email hoje pela manhã... Ele falava de tudo que vira de triste e trágico. Do medo, do pânico. Ele disse que até mesmo os militares estavam em pânico. Mas que, por outro lado, ele viu o carinho e a esperança. ELe sentiu o carinho de centenas de pessoas que nem o conheciam, mas que se mobilizaram rapidamente para enviar roupas, comida, água. Mesmo as pessoas que haviam perdido as suas famílias, as suas casas, haviam encontrado no serviço um consolo, uma razão para viver.
Da janela, eu podia ver a chuva caindo com força. Ela caía também por sobre as copas das árvores que minha irmã gêmea e eu plantamos há cinco anos atrás... Mais de quinze árvores, só aqui na nossa rua. Mais de setenta árvores, só na rua do lado. Mais cem, em outra rua. Umas quinhentas, aqui no bairro. Mais de cinco mil, se formos contar tudo. "Para quê, meu Deus? Se, com um toque de sua mão invisível, tudo pode estar destruído em um só segundo?"
A minha melancolia já estava ficando chata até para mim mesma. Senti na pele algo que li certa vez no livro clássico de Medicina Chinesa, o Neijing: "O homem não está de modo algum separado da natureza". Eu não queria, mas estava sentindo com grave intensidade o que havia se passado na região serrana. A tristeza acometia o meu coração.
"Você pensou que seria fácil a vida na Terra, Atma?" indagou-me o meu companheiro, logo após o ocorrido na região serrana. Eu chorava, e estava deitada na cama sem vontade de levantar. Tudo estava ruim, feio, trágico. O mundo estava derretendo, sacudindo, se quebrando, se desmantelando! E, ainda assim, ainda queriam devastar mais um pedaço da Amazônia para construir uma mega hidroelétrica! Que seres humanos são esses? Que planeta é este? Fora isso, a previsão de 2012! Que meleca! Se tudo vai se acabar, por que não acabava logo de uma vez? Eu não via sentido nos atos dos homens! Eu não via sentido nessa manifestação caótica de vida! Tudo estava um caos! Por alguma razão, a tragédia na região serrana havia me mostrado essa face da vida com muita clareza.
Olhei para o meu namorado. Já tinha até me arrependido de ir para a casa dele. Eu estava de mau humor, de mal com a vida! Em vez de me abraçar e me acalentar em minhas tristezas, ele manteve-se de pé perto da janela e, em tom de voz firme - com sua voz de trovão - despertou-me,
"Ninguém nunca lhe disse que a vida no plano material seria fácil! Olhe como você está sendo ingrata! Egoísta!"
Engoli a saliva e fiquei olhando para o teto.
"Está aí chorando, enquanto pessoas que perderam suas casas, que perderam seus entes queridos, estão lá, trabalhando como voluntários!"
De súbito, a presença de Babaji fez-se presente conosco, com sua aurea perene e intransponível. Babaji é força de amor firme e não-egoísta.
Com o discurso dele, envergonhei-me, e pus-me sentada na cama, cabeça baixa. Respirei fundo algumas vezes e, de repente, foi como se uma nuvem escura houvesse sido afastada do meu horizonte. A nuvem do medo. Medo-ignorância.
"Eu estou envergonhada, Babaji.." vibrei. "Desculpe, você tem toda razão," falei.
Vendo que eu havia adotado outra postura, meu companheiro veio então para perto de mim e me abraçou.
Só então eu fiquei tentando imaginar o quanto deveria ter sido difícil para ele ter estado lá em Teresópolis - a cidade onde ele nasceu e foi criado - no dia em que tudo aconteceu. Ele pôde ouvir a chuva caindo forte, em uma mesma pancada incessante por mais de três horas. "Parecia que o céu ia cair," contou-me ele. No dia seguinte, quando saiu para andar de bicicleta com os amigos, foi que começou a descobrir a gravidade do que havia acontecido.
Agora, com essa chuva forte caindo de novo, aqui no Rio, penso no positivismo do jovem jornalista, que falou sobre carinho e esperança. Penso em Babaji, que me puxou as orelhas quando, por egoísmo, me permiti ficar triste. (E, no fundo, continuei.) Penso no meu companheiro, alma bonita de bem viver. Penso nas plantas, e no trabalho de cura que elas pacientemente realizam com o homem.
Encostei a bocheca na janela. "Será que toda essa vida vale a pena?" Dei de ombros. A vida é um mistério. Toda essa manifestação de energia. Eu sempre me pergunto o por quê! Mas, quer saber? Dei de ombros. Se é para acabar tudo, que eu esteja escrevendo, que é o que mais gosto de fazer.
Agora estou sentada no sofá e as gotas de chuva insistem em cair. O barulho estava mais assustador antes. Um padeiro até está passando, buzinando e anunciando pão quentinho, quarenta minutos depois de forte toró.
à minha mente, surge repentinamente uma imagem de monges tibetanos, no alto da montanha. Eles estão reunidos, sentados em volta de um pátio com uma estrutura redonda, onde eles depositam grãos de areia coloridos, formando belíssimas formas geométricas: mandalas tibetanas.
As mandalas tibetanas são feitas de areia. Apesar disso, ão construídas com todo o esmero. Cada grão é ajeitado cuidadosamente, primando para que a mandala fique perfeitamente harmoniosa e bela! Como estava linda, com suas cores de diversas tonalidades: laranja, amarelo, vermelho, prata, dourado, negro, ouro, verde...
"Por quê? Se depois vocês vão desfazer tudo, usando aquela vassourinha de mão?" perguntei a eles, pelo mundo a imaginação. Seus rostos me eram familiares.
Um velho monge bochechudo olha para mim, como se pudesse de fato me ver por algum mecanismo especial e, com a força do olhar, me diz sorrindo,
"Você sempre soube que seria assim. A mandala tibetana é para lembrar da transitoriedade de tudo o que existe no mundo material. A vida é como uma linda mandala tibetana. É transitória. Porque esta é a natureza do mundo material. Sempre foi assim. Por que se magoar com a natureza da dualidade?"
"Mas agora parece que tudo está mais evidente para mim..." balbuciei.
O monge sorriu. "É assim. Existe sempre um tempo para o espírito despertar certas habilidades." Ele disse isso e, com o sorriso iliminado em seu rosto cor de canela, pegou a sua vassourinha em miniatura e, com um movimento cheio de leveza, de um golpe só desmanchou grande parte da lindíssima mandala multi-colorida que levara dias para ser cuidadosamente construída. Os outros monges, em volta, sorriram. Um deles fez vibrar um sininho com cabo de madeira finamente trabalhado e com um fio de pano com um pom-pom colorido na ponta.
Fiquei observando o capricho, o esmero em cada detalhe. Quanto primor... Harmonia, beleza... Mesmo que seja tudo tão efêmero...
Depois de desmoronar a mandala por inteiro, o mestre de bochecha cor de canela tornou o olhar para mim novamente e, com o sorriso mais lindo que já vi vibrar em um olhar, me fez lembrar, "E por que não valeria a pena, Atma? Por que não valeria a pena?!"
Dizendo assim, desapareceu como que por encanto.
A chuva havia passado. O padeiro estava parado vendendo pão para a vizinha aqui da frente. Ela pegava o saco cheio de pão, enquanto a netinha puxava a barra da saia dela. O sol nasce todo dia. Os planetas giram. O sistema solar segue o seu percurso. A galáxia dança em meio a este universo de energia inimaginavalmente imenso e misterioso. Para quê tudo isso, meu pai?
Nunca soube dizer... Nunca soube...
Mas, de repente, me deu uma vontade de sair para andar. De chinelos! Para poder sentir um geladinho no meu pé. Umas folhinhas de grama grudando nos meus dedos. Sentir o sol que já estava se pondo tocando a minha pele. Sentir o vento. Ver as pessoas. Tudo tão temporário. Mas tudo tão perfeito em sua intensidade de força de vida!
Ô, vida misteriosa! Ensina-me a viver plenamente cada segundo desta manifestação de vida! Com sabedoria de bem viver...
Me ensina a ser tal como um grão de areia de uma linda mandala tibetana! Seja qual for a minha cor: rosa magenta, verde, azul, amarelo... Que eu apenas saiba bem viver.
Saí pela rua e fiz exatamente o que tinha imaginado. Voltei para casa cheia de fiapos de folhas nos pés. Ao chegar, a minha sobrinha já estava aqui em casa de novo.
"Tia Atma! Tia Atma!" gritava ela cheia de vida e de alegria por me ver de novo. Abracei-a, com carinho infinito, devolvendo a intensidade da alegria que ela me doava.
"Vamos ver Rei Leão, tia Atma?"
"Pela décima vez, Cristalzinha?"
"É, titia!" respondeu ela, com a mesma empolgação de sempre.
"Tudo bem..." pensei eu. "O sol nasce todo dia, o planeta gira inúmeras vezes em volta da Terra... O sistema solar gira em torno do sol central sei lá quantas vezes... Que mal há assistir o Rei Leão pela décima vez com a minha sobrinha?" pensei, e fui acometida por uma alegria muito grande no meu coração. E senti que, em tudo, havia uma ordem e um mistério, por mais caótica que alguma situação pudesse parecer.
Estava sentada assistindo o Rei Leão com a Cristalzinha quando, de súbito, tive a impressão de ver um vulto passar pelo corredor. Um vulto de um velho monge com bochechas-cor-de-canela.
Sorri, e pensei cá com os meus botões... "É... Tantas vidas... Tantas encarnações... Tantos mestres, tantos amigos! Mas, continuamos sempre unidos pelos laços do amor! Essa é a única certeza que eu tenho na vida."
E tudo me pareceu valer a pena. Essa é a mágica da vibração do Amor.
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ATMA
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